Dona Europa livrou-se, há séculos, da
tutela do Senhor Feudal, ao qual esteve submetida ao longo de mil anos. Cabeça
feita por Copérnico, Galileu e Descartes, casou-se com o Senhor Moderno Liberal
e montou casa no bairro da Democracia.
Dona Europa puxou o tapete
dos nobres, deu um chega pra lá no
papa e elegeu governos constitucionais que trocaram a permuta pela
moeda, evitaram fazer uso de mão de obra escrava, transformaram antigos
camponeses em operários merecedores de salários.
Dona Europa
passou a nutrir ambições desmedidas. Fitou com olho gordo o imenso mapa-múndi
que enfeitava a sala de sua casa. Quantas riquezas naquelas terras habitadas por
nativos ignorantes! Quantas áreas cultiváveis cobertas pela exuberância
paradisíaca da natureza!
Dona Europa lançou ao mar sua frota em
busca de ricas prendas situadas em terras alheias. Os navegantes invadiram
territórios, saquearam aldeias, disseminaram epidemias, extraíram minerais
preciosos, estenderam cercas onde tudo, até então, era de uso
comum.
Dona Europa praticou, em outros povos, o que se negava a
fazer na própria casa: impôs impérios, reinados e ditadores; inibiu o acesso à
cultura letrada; implantou o trabalho escravo; proibiu a industrialização;
internacionalizou normas econômicas que lhe eram favoráveis, em detrimento dos
povos alhures.
Um dos povos de além-mar dominados por Dona Europa
ousou rebelar-se em 1776, emancipou-se da tutela e se tornou mais poderoso do
que ela – o Tio Sam.
O professor Maquiavel ensinou à Dona Europa
que, quando não se pode vencer o inimigo, é melhor aliar-se a ele. Assim, ela
associou-se a Tio Sam para exercer domínio sobre o mundo.
Dona
Europa e Tio Sam acumularam tão espantosa riqueza que cederam à ilusão de que
seriam eternos o luxo e a ostentação em que viviam. Tudo em suas casas era
maravilhoso. E suas moedas reluziam acima de todas as outras.
Ora, não há casa sem alicerce, árvore sem raiz, riqueza sem lastro. Para manter
o estilo de vida a que se acostumaram, Dona Europa e Tio Sam gastavam mais do
que podiam. E, de repente, constataram que se encontravam esmagados sob dívidas
astronômicas. O que fazer?
A primeira medida foi a adotada em
turbulência de viagem de avião: apertar os cintos. Não deles, óbvio. Mas de seus
empregados: despediram alguns, reduziram os salários de outros, deixaram de
consumir produtos importados. Assim, a crise da dupla se alastrou mundo afora.
Dona Europa e Tio Sam não são burros. Sabem onde mora o
dinheiro: nos bancos. Tio Sam, ao ver o rombo em sua economia, tratou de rodar a
maquininha da Casa da Moeda e socorreu os bancos com pelo menos US$ 18
trilhões.
Dona Europa tem várias filhas. Segundo ela, algumas não
souberam administrar bem suas fortunas. A formosa Grécia parece ter perdido a
sabedoria. Gastou muito mais do que podia. O mesmo aconteceu com a sedutora
Itália, a encantadora Espanha e a inibida Irlanda.
Como o cofre
da família é de uso comum, Dona Europa se cobriu de aflições. Puniu as filhas
gastadoras e apelou à mais rica de todas, a severa Alemanha, para ajudar a socorrer as endividadas.
A Alemanha é manhosa. Disse que só socorre as irmãs se puder
controlar os gastos delas. O que significa cortar as asinhas das moças – o que
em política equivale a anular a soberania.
Soberana hoje, na
casa de Dona Europa, só a pudica Alemanha. O resto da família é dependente e
está de castigo. A mais cheirosa das filhas, a França, anda rebelde. Após
aparecer de mãos dadas com a Alemanha, agora que arrumou namorado novo encara a
irmã com desconfiança.
Nós, aqui do sul do mundo, que ainda não
cortamos o cordão umbilical com Tio Sam e Dona Europa, corremos o risco de ficar
gripados se Dona Europa continuar a espirrar tanto, alérgica ao espectro de um
futuro tenebroso: a agonia e morte do deus Mercado, cujos fiéis devotos
mergulharam em profunda crise de descrença.
Frei Betto é escritor, autor de
“Calendário do Poder”
(Rocco)
Nenhum comentário:
Postar um comentário